sexta-feira, maio 04, 2007

"Farra do boi"


Da farra-de-homens mal-acostumados, contra bois indefesos
Sônia T. Felipe



Do boi e do homem voltamos sempre a falar, no Estado de Santa Catarina, a cada ano, com a aproximação das festas da ressurreição. Sempre a pretexto de se preservar a cultura e a tradição açorianas, trazidas para a Ilha de Santa Catarina, aficcionados cidadãos, rasgando a Constituição e ridicularizando a ética e a justiça, reúne-se, levando suas próprias crianças, tão vulneráveis à violência e à morte como o boi, para correr atrás de bois, em estado de pânico. Parece muito inocente, essa farra que mata jovens e meninos, todos os anos, erroneamente denominada de a farra do boi, pois, a bem da verdade, ela é simplesmente a farra de alguns poucos homens, com gosto de sangue a lhes anuviar o sabor da própria vida.



O boi corre, exausto, faz investidas contra os que o maltratam, estaca, senta-se, bufa, as narinas dilatadas, o pulmão em sufoco, o coração em disparada, um toco ensanguëntado no lugar da cauda. Coração, pulmões, músculos, e a desproporção entre a estrutura muscular de suas pernas e o volume do corpo, obrigado pela multidão a mover-se com velocidade, são o que de mais objetivo se apresenta aos sapiens, como indicadores da constituição vulnerável do bovino.

Por natureza, esse animal não é de corrida, muito menos, de luta. Ele não tem garras nem presas. Não ataca a não ser em legítima defesa, não morde, nem fere, se deixado em paz. O volume de seu corpo, porém, excita os machos que fazem uma farra. Confrontar-se com tal volume parece propiciar-lhes o que lhes falta: virilidade. E esta não se mostra boa-coisa. É bruta. Machuca e mata.

Investir contra os que o atacam, nem sempre resulta eficaz, para o boi. Para poder investir com sucesso, faltam-lhe os músculos típicos do arranque veloz e da corrida-de-fundo. Falta-lhe, ainda, treinador, massagista, fisioterapeuta, benesses dos reais lutadores humanos, que sobem às arenas do boxe, e das demais lutas nas quais homens confrontam-se fisicamente.

Mas, não se trata apenas da constituição anatômica e fisiológica do animal, também de sua constituição psíquica. O boi investe contra esse outro animal que o provoca, não porque ache isso uma delícia de brincadeira. Ele o faz, tentando demover o agressor de aproximar-se demasiadamente do seu corpo. Afinal, um corpo enorme, pesando mais de meia tonelada, sustentado e transportado por quatro pernas pequenas e finas, com músculos impróprios para a luta, é tudo o que o animal tem, para mostrar ao homem que se excita em sua presença, que essa tradição não apenas é de pouco bom-gosto, mas cruel em sua origem, pois parte do suposto de que os animais são objetos da diversão de homens entediados. Bois são lentos ao caminhar. Grande é a queima de oxigênio para mover seu corpo, por isso ele se move com lentidão. Falta-lhe oxigênio.



O mesmo nos acontece. Sofremos quando temos de nos deslocar em velocidade superior à da reposição de oxigênio. Por essa razão, comemoramos tanto o velocista olímpico, o maratonista. Pois o atleta força sua natureza a superar-se. A diferença é que ele escolhe o desafio e o custo de romper seus próprios limites biológicos. O boi não tem escolha. É simplesmente forçado a compor uma cena que jamais poderá lhe propiciar qualquer benefício. Enquanto os atletas treinam anos a fio sua fisiologia, para superar a condição natural e competir com seus iguais, na arte treinada, a maioria dos seres humanos não se dedica a nada disso, pois não vê benefício algum em gastar tanta energia, para compor a cena final da competição, e servir de espetáculo para os sedentários.



Somos como os bois. Sem treino para o jogo. Qualquer esforço sobre músculos do nosso corpo, não utilizados nas atividades sedentárias diárias, resulta em falta de ar, pulsação acelerada, perda de líquido, dores horríveis durante o esforço desmesurado e no dia seguinte. Em nosso psiquismo a reação que se esboça é a de uma profunda angústia, medo de parada cardíaca, medo de sufocar, medo da dor. Sentamos na calçada, ofegantes. Mas, ninguém nos dá cutucadas nem chutes para que prossigamos.




Tudo o que mais abominariam, caso alguém se atrevesse a fazer contra seus corpos, na farra-do-boi, esses homens fazem contra o animal. Toda a crueldade é praticada em nome da tradição, como se a defesa de um costume fosse um valor absoluto, mesmo quando o costume aparece aos olhos de todos os demais como brutal, violento, inútil, injusto, expressão de um atraso moral inqualificável, pois não faltam argumentos contrários aos mesmos, na mídia impressa, escrita e televisionada.



Os açorianos, caso algum dia tenham brincado com bois soltos nas ruas, certamente o fizeram num tempo em que não havia mais nada para distrair a multidão aborrecida, a não ser os rituais religiosos. A farra é um ato não-religioso, fere os princípios mais básicos da moralidade humana, o sentido de justiça e o próprio conceito de humanidade que a tanto custo se tem procurado
Os animais sensíveis não sentem apenas a dor, têm consciência e angústia do limite de seu corpo. A crueldade contra eles expressa simplesmente o nível de crueldade da qual o homem é capaz, contra os seres de sua própria espécie.




Um país que vilipendia sua própria Constituição, que deixa os policiais observando as práticas de crueldade contra os bois sem levar preso quem farreia, julga-se acima da moralidade humana, acima dos padrões internacionais de civilidade, acima do dever de compaixão e de justiça.




Nesse país, por conta de sua tradição hipócrita e indiferente ao sofrimento de quem sofre a crueldade, exatamente, perecem meninos, vítimas dessa farra contra vida, que, hoje, ao redor do planeta, só no Brasil se pratica com desdém, pois em outros lugares a morte vem pela mão do inimigo, não do que está próximo. No Brasil, há uma farra contra a vida dos seres vulneráveis à brutalidade alheia, que se estabelece a cada dia. Ora o boi é usado como arma para matar a criança, ora o automóvel, ou o hábito de consumir drogas fornecidas por um mercado de violência e morte.




Em uma região apenas, de Santa Catarina, temos essa farra repulsiva, a repetir-se cada ano. O povo do resto do Estado envergonha-se de encabeçar, na quaresma, a lista dos mais violadores dos direitos animais, ao redor do planeta. Mas, a matriz cognitiva e moral da violência é de uma mesma natureza: sua matança em massa, nos centros de confinamento dos animais para o abate, e pela tortura contra os bois escolhidos para a farra dos mal-acostumados a uma tradição que apenas nos achincalha, nosso Estado está batendo todos os recordes internacionais de maldade contra os animais. Há alguém que sente orgulho disso?




Jamais presenciamos qualquer animal praticando atos que excedam sua capacidade física natural. E, menos ainda, o fazem contra nós. Sempre que presenciamos uma cena dessas, esses animais estão em nosso poder e são forçados, por medo de chibatadas, medo da morte ou angústia artificialmente produzida, a fazerem o que, por livre e espontânea vontade jamais fariam.



A farra dos homens contra o boi é uma farra andro-chauvinista, exclusiva do homem. Emoções fortes é o que esse procura, ao colocar um boi na jogada. As mesmas emoções, com nenhum prejuízo ético, esse homem pode conseguir correndo colina acima, para chegar por primeiro. Imagine se um boi o perseguisse colina acima! Farra, na qual uma das partes nada ganha e tudo perde, e outra se regozija é gozo, não é brincadeira. A perversão moral leva o homem a julgar que deve preservar a tradição que lhe assegura o privilégio de gozar às custas da dor e do sofrimento alheios. O estupro é uma prática sexual tradicional. A violência contra as mulheres, também. Não por coincidência, ambas são práticas tradicionais de homens, contra seres vulneráveis.



Se seres superiores a nós em inteligência nos capturassem e nos levassem em gaiolas para seus territórios, nos usassem em brincadeiras aterrorizantes, incompreensíveis para nosso intelecto, certamente não expressaríamos em sua língua o sofrimento ao qual nos sujeitariam, mas, estarrecidos, constataríamos a existência de seres capazes da maldade, resultante do uso de sua superioridade intelectual e racional para troçar cruelmente de nós. O modo como toleramos a crueldade e extermínio de animais não-sapiens revela, lamentavelmente, o quanto toleramos a crueldade contra adolescentes nas ruas, negros, homossexuais, mulheres, idosos, pobres e sem-teto. Para mudarmos nossa relação com esses últimos, urge que nos demos conta do que fazemos a todos os seres que julgamos inferiores a nós.





O valor da vida: de seres sencientes... humanos... e de pessoas

8. O valor da vida: de seres sencientes... humanos... e de pessoas

Quando se discute o valor da vida, o valor da vida de um ser humano, e o da vida de uma pessoa, a questão central é a do direito de se tirar ou não a vida de tais seres. Há, porém, ainda uma segunda questão, a do direito de tratar os seres de modo discriminatório em função do valor que suas vidas possuem. Reconhecer um valor distinto para os seres que são pessoas, não implica em atribuir a esses seres o direito de maltratar ou mesmo de matar seres que não chegam a constituir-se como pessoas. Dado que não há superioridade nem inferioridade, embora haja distinção na qualidade de diferentes formas de vida, nenhum ser tem um direito superior ao de um outro ser qualquer à vida. O maior valor que sua vida lhe oferece deve bastar a um ser que vive uma vida distinta como privilégio. Nesse sentido, ao nascermos em uma espécie que nos dota de habilidades que nos permitem gozar a vida de uma pessoa, tal existência por si só já traz consigo tantos benefícios que não devemos concluir ter ainda mais direitos sobre a vida ou a condição de vida de outras formas de ser, diversas, distintas da nossa.

Não é especista reconhecer que a vida de um ser capaz de pensamento abstrato, consciência, planejamento futuro, de atos complexos de comunicação, é mais valiosa do que a de seres não capazes de tudo isso. Mas, acrescenta Singer, é preciso primeiro discutir a questão do valor da vida de modo geral, para se poder fazer uma discussão do valor dela do ponto de vista ético, que compara, então, a vida, como um interesse a ser igualmente considerado.[53]

Não decorre, da distinção e valorização que Singer faz da vida humana, nenhum juízo moral ou norma de discriminação contra os interesses de seres não dotados dessa forma de vida, pois o Autor estabelece uma diferença entre a vida da espécie humana, comum a todos os seres nela nascidos ou em vias de nascer, e a vida de um ser dessa espécie que se constitui como uma pessoa. A espécie a qual um ser pertence não pode ser a razão pela qual infligimos a esse ser dor e sofrimento, ou propiciamos a ele prazer e bem-estar. "Dar preferência à vida de um ser simplesmente porque ele é membro de nossa espécie é algo que nos colocaria na mesma posição dos racistas, que dão preferência aos que são membros de sua raça."[54]

Quando se discute o valor da vida, o valor da vida de um ser humano, e o da vida de uma pessoa, a questão central é a do direito de se tirar ou não a vida de tais seres. Há, porém, ainda uma segunda questão, a do direito de tratar os seres de modo discriminatório em função do valor que suas vidas possuem. Reconhecer um valor distinto para os seres que são pessoas, não implica em atribuir a esses seres o direito de maltratar ou mesmo de matar seres que não chegam a constituir-se como pessoas. Dado que não há superioridade nem inferioridade, embora haja distinção na qualidade de diferentes formas de vida, nenhum ser tem um direito superior ao de um outro ser qualquer à vida. O maior valor que sua vida lhe oferece deve bastar a um ser que vive uma vida distinta como privilégio. Nesse sentido, ao nascermos em uma espécie que nos dota de habilidades que nos permitem gozar a vida de uma pessoa, tal existência por si só já traz consigo tantos benefícios que não devemos concluir ter ainda mais direitos sobre a vida ou a condição de vida de outras formas de ser, diversas, distintas da nossa.

For fim, o atraso das ciências em relação à capacidade mental da maior parte das outras espécies animais não nos permite concluir que os demais animais não podem ter a existência de pessoas. Até há alguns anos atrás, dizia-se de todos os animais que eram incapazes de sentir dor, prazer, de pensar e de comunicar-se. Hoje já se diz de muitos deles que são capazes de tudo isso na sua forma específica. Enquanto não temos estudos mais refinados que nos permitam concluir que outros seres são incapazes de se tornarem pessoas, o melhor é "conceder-lhes o benefício da dúvida",[55] e isso significa, tratar a todos como se fossem pessoas, dispensando a eles os cuidados e prevenções que dispensamos a uma pessoa para minimizar seu sofrimento ou proporcionar seu bem estar.

Se concluirmos que embora um ser seja sensível e consciente das experiências presentes, não retém das mesmas qualquer memória, e, pois, não tem em relação ao futuro nem desejo de bem-estar nem cuidados para evitar situações hostis a esse bem-estar, assim, se um ser vivo não tem autoconsciência, a morte, para esse ser não aparece como uma ameaça capaz de lhe estragar o prazer de estar vivo. Mas, ainda assim, dado que o ser é dotado de sensibilidade em relação às experiências presentes, se a ele for imposta a morte, esta não pode ser dolorosa. "... A condição de senciente basta para que um ser seja colocado dentro da esfera da igual consideração de interesses"[56] e a qualidade de vida desse animal até o momento do abate expressa o nível de moralidade daqueles que o mantiveram vivo.

Referências: Peter Singer